sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Contos Contados

A Cidade Do Vento

O vento corria violento, acometido de fúria incontida . As águas do rio enchiam-se de vagas incontroladas, dando-lhe um aspecto irreal de mar comprimido por margens.
As árvores curvavam-se como se vida as tivesse derrubado com a força das amarguras, quais seres para quem a existência demorada requebrara os ossos, que o tempo descompadecido fragilizara.
Os vidros das janelas batiam como corações descompassados deixando que o vento perpassasse as suas frestas e penetrasse nas casas, alagando-as de um frio entranhado.
A atmosfera esvaziava-se de ar e enchia-se de vento, toda ela compacta como uma pepita maciça, de uma solidez consistente.
As pessoas avançavam ligeiras, empurradas pela manigância da ventania, vacilantes e levadiças como se asas repentinas as fizessem planar em voo livre.
E o vento continuava, desenfreado, em rodopios e viravoltas, num mirabolante espectáculo de trapezista destemido e experiente.
Rita estava sentada numa pedra redonda e luzidia, que elegia sempre que as suas fantasias de menina lhe invadiam a mente. Esquecida de si e de todos, enveredava por histórias fantásticas que a projectavam num mundo irreal e imaginário, onde o sonho tomava contornos de realidade desejada.
Dali, daquele lugar alto, qual acrópole, era dona do mundo que abarcava. Guardava-o, todo inteiro, dentro de si, como uma pedra preciosa numa caixinha de jóias. Transformava-o à sua medida, dando-lhe contornos mais límpidos, varrendo do seu interior as cores escuras, até ele ficar pleno de vida como um carrilhão, cujos sinos afinados toam a sua música
E a menina escrevia no seu coração, com letras de plenitude, o alfarrábio do mundo, que o sonho não conhece limites e se supera a si próprio quando é abarcado pelo querer.
Sentia o vento forte, imperioso, que a perpassava, e tomava-lhe o gosto, o paladar de flores e de céu que trazia consigo. Gostava do vento, percebia-lhe as intenções, entregava-se a ele.
Os seus cabelos dançavam e batiam-lhe nos olhos, que cobriam como uma cortina de cassa, vislumbrando apenas tirinhas de mundo, como um puzzle que gostava de refazer.
Estendeu os braços, abriu os dedos das suas mãos pequenas e o vento entrou neles, e fez casa no seu peito, ali aninhado como um filho no útero materno.
Rita ria e rodopiava, companheira da dança do vento, livre e feliz, com inefável prazer. E entabulava conversas com ele que lhe contava as histórias trazidas de longe, de países estranhos e mágicos, de gente de todas as raças, de povos diferentes...
Então, Rita encheu o regaço de histórias, entrançou-as umas nas outras para que não se escapulissem e construiu com elas uma estátua.
Chamou-lhe a estátua encantada.
Apertou-a cuidadosamente no seu colo de criança e desceu a encosta, com passos leves de algodão macio.
Foi colocá-la mesmo no centro da cidade para que todos a pudessem ver, tocar-lhe e arrancar-lhe um pedaço de magia que enchesse as suas existências.
Agora, quando o vento chega àquela cidade, já ninguém fecha as janelas e deixa-o entrar, para que as casas fiquem também repletas dos mundos mágicos que ele traz consigo.
E as pessoas vêm para a rua e dançam também a dança do vento, em roda larga, defronte da estátua encantada.
A vida, essa, continua no seu intemporal e constante fluir.
A cidade do vento, plena de existência, estende os seus ramos largos e abraça o mundo num enlace estreito
Bem no centro, como um mito antigo, a estátua encantada pousa o olhar em redor e docemente sorri, deixando-se enlaçar, enamorada do vento que passa e a envolve.

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

O tempora! O mores!

Acabadíssima de chegar à vestusta e mui ilustre invicta cumpri o ritual nortenho do quente e fumegante cimbalino (nada dessa purga de "delta", que pulula pela "mouraria", que mais parece uma chávena de óleo de fígado de bacalhau!GRRRRR).
Eis-me, pois, a saborear as delícias de um bom buondi, quando me surge uma amiga de longa data, professora do ensino primário.Sim, porque primário é mesmo só o ensino, ela de primária nada tem. Fina, a cachopa!
Vinha com um ar de quem não conseguia manter o riso e, imediatamente, após ter-se sentado na minha mesa, começou a contar que vinha da escola e tinha pedido às crianças que lhe descrevessem um passeio que tinham feito a Lisboa. E apresenta-me este texto escrito por um aluno da 4ª classe:
Título
Paseio a Lisvoa
Nós saimos de manha bem sedo e andemos, andemos andemos, andemos. Depois paremos para fazer xixi e continuemos na carreira. Mais adiante a gente paremos para a gente comermos e depois continuemos. E andemos, andemos, andemos outra vez e paremos em lisvoa e a gente vemos uma coiza muito bunita que era duns reis e se xama gerónimos. Então voltemos e andemos, andemos, andemos e paremos para fazer xixi e quando já tinha pasado muito tempo a gente paremos outra vez e a gente comemos. Depois andemos, andemos, andemos e só paremos no Porto outra vez.Gustei muito só axei que andemos demais.
Bem, NÓS (e aqui este "NÓS" sou mesmo eu! Perdoai o plural majestático, mas, credo... a gente - EU - não aguentemos!!!) fiquemos de boca aberta, paremos de respirar e exclamemos:
-Apre, se continuemos assim, cheguemos a 1º ministro!
A minha amiga ria-se a bandeiras despregadas e afirmou não saber mais o que fazer com semelhante aluno.
Se alguém sabe, que o diga, por favor!
É que a gente assim não aguentemos, bolas!
Li de Queiroz

Porque hoje é...Sábado!

Esta é uma história verídica, ainda que seja difícil de acreditar.
Resolvi "vertê-la" para o papel e deixar escorregar a pena...que é como quem diz, deixar escorregar a tecla, e fazê-la surgir no monitor. Ai vai:
O café "in" da velha vila frequentado pela society estava pejado da dita!Havia as Senhoras Donas, as Donas e as senhoras, simplesmente. As primeiras, de sóbrio fato de corte irrepreensível e colar de pérolas no colo marmóreo; as segundas, num arremedo de auto-valorização social e económico, ostensivamente carregadas de ouro e roupas coloridas; as últimas, alheias aos caprichos mundanos, com um confortável chinelo de onde irrompia, inelutável, uma meia de felpo.As Senhoras Donas Marias de Albuquerque e Menezes, as Donas Carlas Marlenes Lopes Pires, as senhoras Lucindas da Silva deste pequeno rectângulo à beira-mar plantado...Eis-las, pois!E porque era sábado enchiam aquele espaço e, em grupos, meticulosamente seleccionados, de acordo com o titulo honorífico, iam conversando e tornando o ar espesso de ruídos. Do Soares a qualquer outro Mário menos afamado, da inflação em geral ao preço das alfaces em particular, a conversa evoluía.O Senhor Professor Noronha, bem conhecido por aquelas bandas, sentou-se numa mesa do canto, a ler o jornal. Porque era sábado e o hábito tinha ganhado raízes!De quando em vez, deitava um olhar oblíquo, algo divertido, algo enfadado para a clientela que o circundava.E eis que surge, como em todos os sábados, o senhor Aurélio. Não havia pessoa da terra que não conhecesse o senhor Aurélio e as suas tiradas, verdadeiras pérolas da nossa literatura.E porque era sábado, sentou-se na mesa do senhor professor Noronha, o único dia da semana em que lhe era permitido tal devaneio.Ansioso por mostrar a sua cultura mais uma vez, desejoso de fazer uma figura digna, pressuroso em mostrar que havia estudado bem o dicionário de A a Z, exclama de braço em riste:
- O senhor Professor sabe como é, temos que nos cultivar! Olhe, ando a ler um livro de que certamente já ouviu falar, do António Só! Conhece o António Só, senhor Professor?
- Concerteza, senhor Aurélio, é o tal escritor português que escreveu o..."Nobre"!!!- respondeu o senhor Professor, impávido e sereno, sem qualquer contractura facial, nem que para um sorriso complacente.
Triunfante, o Senhor Aurélio, continua:
-Sabe, senhor Professor, estou em crer que se concretizará uma coligação política entre o PP e o PSD. Enfim, não tenho a certeza de que ela aconteça, isto é apenas um bouquet ideológico que eu idealizo no espaço abstracto que me rodeia, porque eu em matéria de política sou uma reserva nacional.
- Concerteza, Senhor Aurélio, quem o duvida? Aliás, o senhor e o champanhe!Sempre o afirmei!O senhor Aurélio inchava de contentamento, impante de orgulho. Não quis ficar por aqui e disse:
_ Olhe, senhor professor, é o que eu lhe digo, isto do progresso é como tudo, tem vantagens e inconvenientes! Ora pense comigo, senhor professor! Antigamente, fazia-se uma distância de 20 kms numa hora. Agora, os meios de transporte são muito mais rápidos, mas há tantos inconvenientes semafóricos, que se demora o mesmo tempo. Bolas para o progresso!
A esta, o senhor professor já nem se dignou responder, alheio que estava a comentar para os seus botões:
- Apre, devia haver uma alínea na constituição que proibisse ser-se assim burro!
E porque era sábado e, lá em casa, se almoçava mais cedo, levantou-se, despediu-se numa inclinação austera de cabeça e saiu para o ar puro.O problema mesmo é que cada vez há mais...sábados!...
Pelo menos, a avaliar pela jumentice intelectual que por aí abunda! Mas como afirmava, sapientemente, o senhor Aurélio, tudo tem a face e o seu reverso!
Se por um lado nos constrange, é indubitável que nos diverte!
E por aqui me fico, com esta história verídica!Estou de partida para uma viagem de pequena monta, tenho que me despachar. Não vá eu encontrar muitos inconvenientes semafóricos e chegar atrasada à sessão de poesia do António Só!!!
Porque hoje...é sábado!

Li de Queiroz